OS SINAIS DOS TEMPOS E A ALEGRIA DA VERDADE

Por frei Luis Felipe C. Marques, OFMConv. 

Em fevereiro do ano corrente, como de costume, o ISB realizou sua reunião anual de professores. Tal encontro é sempre ocasião de manifestar as luzes e sombras presentes no ano anterior e lançar condições de enfrentamento para o ano acadêmico que apenas estava para iniciar. O primeiro ponto da nossa pauta, como proposta de reflexão inicial e breve partilha, era sobre o recente documento lançado pelo Papa Francisco para as universidades e faculdades eclesiásticas, Veritatis gaudium, a “alegria da verdade”.

Em geral, contemplamos o ideal reformador de um papado “franciscano” que quer atingir todas as frentes da Igreja, sobretudo, aquelas que são/serão responsáveis pela nova evangelização. A sensibilidade de Francisco é a sensibilidade que acompanhou profundamente o processo de elaboração do Concílio Vaticano II. É a percepção de que é sempre necessário construir uma relação entre Igreja e os “sinais dos tempos”.

Para tanto, é preciso acreditar que “o tempo é superior ao espaço (cf. LF, 57; EG, 222-225; LS, 178; AL, 3.261), que a unidade prevalece sobre o conflito (cf. LF, 55; EG, 226-230; LS, 198); que a realidade é mais importante que a ideia (cf. LS, 201; EG, 231-233) e o todo é superior à parte (cf. LS, 141; EG, 234-237)”. Peçamos que o dom do Espírito Santo: Espírito de verdade e amor, de liberdade, justiça e unidade (cf. VG, 1), venha sobre nós.

O documento que vamos tratar, já a partir do título, Veritatis Gaudium, evidencia a relação com a exortação apostólica Evangelii gaudium, de 2013, que representa a metodologia do pontificado.

Veritatis Gaudium, está sendo publicada quase 40 anos após a constituição Sapientia christiana, que tratava da mesma questão, promulgada por João Paulo II. Assim, “fiéis ao espírito e às orientações do Vaticano II e como sua oportuna atualização, torna-se hoje necessária e urgente tal revisão” (cf. ibid).

Nestes tempos, somos conscientes de que “para empreender ‘com espírito’ uma nova etapa da evangelização é preciso um decidido processo de discernimento, purificação e reforma” (cf. VG, 3). E, nesse processo, somos chamados a desempenhar papeis estratégicos e promover adequadas renovações. Essa tarefa enorme e inadiável requer, no nível cultural da formação acadêmica e da pesquisa científica, o compromisso generoso e convergente em prol de uma radical mudança de paradigma e de uma corajosa revolução cultural (cf. ibid).

Hoje torna-se cada vez mais evidente que “é necessária uma verdadeira hermenêutica evangélica para compreender melhor a vida, o mundo, os homens” (cf. VG, 3). A sociedade “interconectada” nos obriga a postular verdades próprias, o que não podemos aceitar, enquanto formos fieis à unidade da Igreja. Se faz necessária “uma atmosfera espiritual de investigação e certeza fundamentada nas verdades da razão e da fé” (ibid). A filosofia e a teologia podem consolidar e fortalecer o intelecto e iluminar a vontade. Contudo, a fecundidade do processo só poderá ser alcançada com mentes abertas e joelhos dobrados (cf. ibid).

O confronto com o mundo consolidará nossas ideias, para não fazê-las desaparecer no ar. Acreditamos que a verdade é uma sinfonia, onde muitas vozes se entrelaçam na fundamental.

Os estudiosos devem, como afirma o Cardeal Ravassi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, ser “capazes de preservar, em uma sociedade cada vez mais líquida, uma dimensão simbólica, unindo espiritualidade e corporeidade, fé e razão, indivíduo e comunidade, espiritualidade ascendente e horizonte, o concreto, onde estamos imersos”. Em um famoso discurso aos Jesuítas, o Papa Francisco, dizia que precisamos de "uma teologia da inquietação, incompletude e imaginação".

Contudo, vemos crescer diante dos nossos olhos outra problemática fundamental. Muitos acreditam que temos resposta e cultura necessária para enfrentar a crise atual. Temos necessidade de construir lideranças que tracem caminhos (cf. VG, 3). Infelizmente, é reinante na mentalidade eclesiástica uma incapacidade de autocrítica, já trazida à baila com Amoris Laetitia. Portanto, enfrentamos um risco: o de não compreender a necessidade de reforma, ditada pela mudança dos tempos, e permanecer dentro do limbo da autorreferencialidade estéril.  

Enquanto o Papa Francisco caminha seguro pelo caminho da reforma, uma parte consistente do corpo eclesial, tanto na cúpula quanto na base, na pastoral e na teologia, nas cúrias e nas academias, permanece firme em representações velhas e em práticas superadas.

Como pregava o Papa Francisco, na sua recente visita a Macedônia (07/05/2019): “julgamos que o conformismo saciaria a nossa sede e acabamos por acolher indiferença e insensibilidade. Estamos prisioneiros do descrédito, dos rótulos e da infâmia. Alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza e acabamos por comer distração, fechamento e solidão. Empanturramo-nos de conexões e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade”.

Porém, ao mesmo tempo, o Espírito que tudo refaz traz uma oportunidade: reformar-se sabiamente e tornar-se a semente boa e frutífera para uma sociedade desprovida de sólidos pontos de referência e completamente confusa. De tal modo, sem perder a memória, sempre necessária para viver o presente com paixão, evitaremos seja o “restauracionismo” seja a “ideologia”, que tanto mal faz à Igreja. Com uma bela imagem, Bento XVI, referindo-se à Tradição da Igreja, afirmou que esta “não é transmissão de coisas ou palavras, uma coleção de coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes” (Catequese, 26/04/2006; VG, 4).

Tudo isso é um processo, passo a passo. Os problemas são resolvidos com processos e itinerários, não ocupando espaços. O tempo é superior ao espaço (cf. LF, 57). É preciso caminhar na esperança e na tensão entre o presente fugaz e o futuro em aberto

Também a Veritatis Gaudium corre um perigo. O texto consiste em duas partes. Na primeira, o proêmio, temos quatro princípios fundamentais, “no sulco do ensinamento do Vaticano II e da experiência da Igreja amadurecida nestas décadas” (cf. VG, 4), que propomos para cada dia desta XXI Semana Acadêmica. Na segunda, estão contidas as normas comuns, especiais e finais. Se não relacionarmos as duas coisas, corremos o risco de obter apenas uma maquiagem.

O primeiro dos quatro princípios fundamentais diz respeito à “identidade missionária”: “é preciso voltar ao querigma, isto é, ao coração do Evangelho, ao essencial do anúncio cristão, da feliz notícia, sempre nova e fascinante, do Evangelho de Jesus, que cada vez mais e melhor se vai fazendo carne na vida da Igreja e da humanidade” (cf. ibid). Dessa concentração vital e jubilosa deriva a experiência libertadora e responsável de viver como Igreja a ‘mística do nós’ que se torna fermento para fraternidade universal, “um mistério que mergulha suas raízes na Trindade” (cf. ibid). Assim, com esta sensibilidade, poderemos descobrir um “sacramento” em cada vestígio deixado pelo criador.

O segundo critério é o diálogo sem reservas, “não como mera atitude tática, mas como exigência intrínseca para fazer experiência comunitária da alegria da Verdade e aprofundar o seu significado e implicações práticas” (cf. ibid).

O terceiro critério é o da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, isto é, para superarmos a fragmentação do saber e dos conhecimentos científicos. O que qualifica a proposta acadêmica, formativa e investigativa, tanto no conteúdo quanto no método, é o princípio vital e intelectual da unidade do saber na distinção e respeito pelas suas múltiplas, conexas e convergentes expressões.

O quarto princípio diz respeito à capacidade de fazer rede, buscando valorizar a contribuição positiva e enriquecedora das realidades mais periféricas (cf. ibid).

Por fim, tudo isso pode partir de uma análise de Paulo VI, em Populorum progressio, e Bento XVI, em Caritas in veritate, “há uma carência de sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma orientação” (cf. CV, 31), e, portanto, a missão especial confiada aos estudiosos é redescobrir. É preciso redescobrir a interdisciplinaridade, na sua forma ‘forte’ de transdisciplinaridade e interdependência, como colocação e fermentação de todos os saberes. A tomada de consciência desta interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projeto comum, dentro do espaço de luz e vida oferecido pela sabedoria que emana da Revelação de Deus (cf. VG, 4)