A BELEZA DO DIFERENTE RESIGNIFICA A PRÁTICA DA FÉ

Por Frei Luis Felipe Marques, OFMConv.

Na complexidade das sociedades contemporâneas, lidamos como uma paz muitas vezes confundida com um estado inerte de repouso e de despreocupações. Com uma paz um tanto silenciosa, quase isenta de conflitos e problemáticas, nutrida de indiferenças, individualismos e egoísmos. Com uma paz simplória, camuflada de um certo bem-estar, de um “modo de ser medíocre”, caricaturada pelo comodismo e pelo conformismo, que supostamente servem à uma tradição e se sobrepõem ao frenesi das novas gerações.

Lidamos com uma paz revestida, muitas vezes, de um estado democrático de direito com sua intrigante representatividade política e sua larga capacidade de dar “voz e vez” aos que na prática, por recursos democráticos semelhantes, são impedidos de serem vistos e ouvidos. Uma paz ilusoriamente anunciada e “conquistada” pelas vias da violência, da posse de armas e do medo, em vista de uma atraente e exemplar ordem social e defesa pessoal, o que curiosamente cintila uma profícua e insaciável busca pelo poder. No entanto, o que viemos celebrar nestes dias aqui vai além de tudo isso.  

Como afirma o Papa Francisco, “devemos ter a coragem de afirmar a incompatibilidade entre violência e fé, entre crer e odiar. Devemos declarar a sacralidade de cada vida humana.  A fé que não nasce dum coração sincero e dum amor autêntico a Deus Misericordioso é uma forma de adesão convencional ou social que não liberta o homem, mas esmaga-o, antes o mata. Hoje temos necessidade de construtores de paz, não de armas; de construtores de paz, não de provocadores de conflitos; de bombeiros e não de incendiários; de pregadores de reconciliação e não de arautos de destruição”.

Celebramos a paz anunciada e vivida há 800 anos na simplicidade e na coragem do Pobrezinho de Assis e de seu companheiro, quando vão ao encontro do sultão, impulsionados pelo ardor da caridade e pelo anúncio da Boa-Nova do Reino. Estamos aqui, meus irmãos e minhas irmãs, para celebrar o ato heroico, como também insano, de Francisco de Assis que toma consigo frei Iluminado e corre para o acampamento dos sarracenos como um simples mensageiro do Deus Altíssimo, um arauto da salvação, da verdade e da paz (cf. 1B 9, 8).

sultao 100419

Corremos o risco de acreditar que Francisco não quer com sua iniciativa, mudar a fé do sultão. Ilusão! O Santo de Assis, como qualquer outro de seu século, está carregado da eclesiologia daquele momento, mais ainda de preconcepções e de medos. Sua empresa missionária tem como meta levar à fé católica aos ditos infiéis, no entanto, a forma e disposição como ele a empreende supera qualquer modelo ou intenção. Imbuído da mais alta liberdade evangélica, o ardor do seu espírito não só o leva ao encontro do diferente como também lhe dá discernimento para celebrar a diferença.

Francisco, homem do espírito e livre de toda mundanidade, possui uma incrível criatividade evangélica, capaz de conduzir o anúncio do Deus Uno e Trino a um profundo louvor ao Deus Altíssimo, Sumo Bem, Todo Misericórdia. Enquanto poderes civis e eclesiásticos utilizam-se das armas para a “conquista da paz” e para a derrota do inimigo, ele sugere, aos que partem em missão, que vivam no meio do povo, sem litígios, contendas, e sim como “súditos de toda humana criatura por causa de Deus”, aguardando o momento certo de manifestarem a fé no Deus de Jesus Cristo (cf. RNB, 16).

Do convívio com o outro, Francisco percebe a beleza do diferente e consegue ressignificar suas práticas de fé. Inspirado pelo toque da trombeta do muezim, que convida à adoração a Deus 5 vezes ao dia, prostrando-se em direção à Meca, ele recomenda que todos os governantes dos povos, ao som de um pregoeiro, rendam com o povo “louvores e graças ao Senhor Deus Onipotente” (cf. CDP 7); como também pede aos frades que ensinem o povo a louvar e reverenciar ao Senhor Deus ao soar dos sinos (cf. 1CC 8).

Mas, podemos nos perguntar, como Francisco teve tempo para perceber o dia-a-dia dos muçulmanos? Para isso é necessário tempo. Não é uma exímia retórica ou um status diplomático que lhe dão muitos dias de convívio entre os sarracenos. Claramente não é uma capacidade de articulação política, nem menos uma defensiva bélica. Só permanece no encontro da diversidade quem possui nobreza de espírito, sensibilidade inteligente e abertura ao diálogo.

Pelo diálogo, Francisco não só está no meio dos diferentes como também se torna um no meio diferentes, com aquela cortesia e nobreza que lhe são devidas. Com abertura de coração e na identificação com o diferente, não quer ferir a integridade do outro, antes, quer conhecer, com-viver, partilhar a vida em vista do bem recíproco. Interessante! Francisco identifica-se com o outro, estabelece vínculos afetivos, é admirado e admira o outro, sem deixar de ser quem é, permitindo-se mudanças na sua forma de ver o mundo, de viver também. A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar.

IMG 5612

Como Arauto do Deus Altíssimo, sua identidade é o tesouro mais precioso que leva consigo: sua configuração à pessoa de Jesus Cristo. Por isso dizia: “cuidai para que vossos corações e pensamentos estejam sempre voltados para o Senhor nosso Deus” (TM 15, 5). Sua vida é evangélica, porque sua identidade é o próprio Cristo. O outro tem sua dignidade, porque também é filho do Altíssimo, é criado à sua imagem e semelhança. E, por isso, também leva consigo a graça divina que é sempre criativa, dinâmica, renovadora e inspiradora. A vida evangélica, fundamento do cristão, é nesse sentido plena possibilidade de diálogo.

Francisco era, sobretudo, o homem do Evangelho, da paz, do diálogo, da cortesia. Por isso, rompe as barreiras e vai ao encontro do Sultão. Ao decidir encontrá-lo em seu território, o  homem de Assis arrisca a vida, faz-se hóspede do Sultão, colocando-se livremente em suas mãos, totalmente despojado de poder, é o menor (cf. Costa, S. A coragem da não conformidade, por causa do evangelho, 2019).

Num tempo em que a diversidade é constitutivo primaz da sociedade, não há possibilidade de diálogo hoje sem que se assuma o dever da identidade, não cedendo à ambiguidade que busca agradar ao outro; muito menos sem assumir com coragem a alteridade, na percepção do outro como companheiro de viagem, não como inimigo; menos ainda se não tiver sinceridade das intenções, contra qualquer tipo de jogo de interesses, mas em vista de um espírito de colaboração. Assim, em 2017, apontava o Papa Francisco em sua visita apostólica ao Egito.

O diálogo, a compreensão, a difusão da cultura da tolerância, da aceitação do outro e da convivência entre os seres humanos contribuiriam significativamente para a redução de muitos problemas económicos, sociais, políticos e ambientais que afligem grande parte do género humano (cf. Documento sobre a Fraternidade humana em prol do paz mundial e da convivência comum, 2019).

O diálogo sincero torna-se alicerce da comunidade da paz, construída por cada homem e mulher de bem em suas relações consigo, com o outro e com Deus. Pelo diálogo, conseguimos ser construtores de civilidade, na valorização do outro, na busca pela dignidade humana, e ser portadores da aliança da paz, contra qualquer tipo de violência, de egoísmo, que ferem o bem comum e a religiosidade autêntica (cf. Francisco, Discurso do Santo Padre aos participantes na Conferência Internacional em prol da Paz. Egito, 2017).

A responsabilidade do diálogo aponta para uma nova forma de convivência mundial. Não podemos entender o diálogo inter-religioso como um evento, como algo que se pode fazer de vez em quando, para se mostrar alguma civilidade na convivência. Não, o diálogo inter-religioso é um verdadeiro programa.

Frente a uma cultura do choque e do rompimento, somos chamados a exemplo de Francisco a constituir uma fraternidade universal, sermos irmãos que na diversidade buscam dialogar e construir um mundo de paz. O medo no encontro do outro, que inicialmente é estranho, transforma-se em admiração, amizade, devoção, numa insistente valorização da riqueza que o outro é. O diálogo entre católicos e muçulmanos, hoje, parece ser uma bela oportunidade de renovação tanto da nossa vida cristã quanto da vida islâmica, revisitando os percalços históricos, ressignificando-os, para projetarmos juntos, não para um mundo futuro, mas queira Deus para o mundo de agora, novos caminhos de unidade e de paz.

Paz e bem!