UM DEUS QUE FAZ PERGUNTAS

 Por Gianfranco Ravasi

O sinal gráfico de interrogação já é eloquente com a sua curvatura que parece agarrar a mente do leitor: sinal muito mais complexo do que o exclamativo, com a sua linha reta que se impõe de modo imperativo.

O próprio léxico já mostra as várias iridescências do ato de perguntar: pedir, mas também interpelar, buscar, postular, consultar e até indagar e perscrutar. Nas classes do Liceu de antigamente, aprendia-se a distinção latina entre o quaerere, um “perguntar” para saber, e o petere, um “pedir" para obter.

A implacável sequência dos “porquês” da criança revela que o desejo de saber, entender, descobrir é estrutural à natureza humana, antes de ser esterilizado pela banalidade das respostas estereotipadas ou pelos jogos eletrônicos. Na verdade, fazer as perguntas verdadeiras é um exemplo nada fácil: Rousseau, na “Nouvelle Eloise” (1761), considerava-a “uma arte mais de mestres do que de discípulos. É preciso já ter aprendido muitas coisas para saber perguntar aquilo que não se sabe”.

E para permanecer ainda no horizonte francês, poderíamos continuar com Balzac, quando, em “A pele de onagro” (1831), reiterava que “a chave de todas as ciências é indiscutivelmente o ponto de interrogação. Devemos a maioria das descobertas ao ‘Como?’. E a sabedoria da vida consiste em se perguntar, para qualquer propósito, ‘Por quê?’”.

Essa divagação sobre um dos componentes capitais do pensamento e da linguagem nos leva a uma encruzilhada repleta de perguntas, a das Sagradas Escrituras. Por um lado, de fato, elas conservam as interrogações “últimas” sobre o mistério, sobre a transcendência, sobre o divino. Por outro lado, elas também nos induzem às perguntas “penúltimas” sobre o ser, sobre a existência, sobre a ética.

A tragédia da ausência de frêmitos que encurvem a mente, a consciência e a sociedade, característica típica de uma época nebulosa marcada pela indiferença, pela superficialidade e pela vacuidade como a nossa, já era definida de forma icástica pelo profeta Isaías: “Procurei, mas não encontrei ninguém; entre eles, ninguém era capaz de dar um conselho, ninguém a quem eu pudesse perguntar e que me desse uma resposta” (41,28).

Pois bem, Cristo certamente ofereceu respostas lapidárias – uma acima de todas sobre a atormentada contiguidade entre fé e política: “Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” – mas, curiosamente, ele também foi um incansável provocador de perguntas.

Um monge de Bose, Ludwig Monti, que nestas páginas já fizemos subir à ribalta devido a um esplêndido comentário sobre os Salmos, contou-as percorrendo os quatro Evangelhos e isolou 217 delas, bem mais do que as 141 que foram dirigidas ao rabi de Nazaré. As estatísticas, porém, não explicam a força disruptiva de muitas das suas interrogações, deixadas serpenteando na multidão dos seus ouvintes e dos seus próprios discípulos.

Monti selecionou 118 delas, distribuindo-as em 41 unidades temáticas e sugerindo que os leitores se deixem interpelar, como pessoas religiosas ou mesmo como pessoas sem opções religiosas, mas não indiferentes, por essa “curvatura” cortante do verdadeiro ponto de interrogação, na consciência – como sugeria Oscar Wilde – de que “para dar respostas, todos são capazes, mas, para fazer as verdadeiras perguntas, é preciso um gênio”.

Por falar em não crentes, curiosamente, o livro é dedicado a uma figura “secular” como Umberto Galimberti, que também tem às suas costas um livro intitulado “O segredo da pergunta” (2008) e que, embora dialeticamente, defrontou-se com os temas teológicos, como eu posso atestar pessoalmente, primeiro como colega de estudos no Liceu e depois como amigo em diálogo. Ele observava que “as perguntas devem ser discutidas dessa maneira anômala, que não é a de responder à pergunta, mas de radicalizá-la, indo o mais a fundo possível, onde se aninha o enraizamento (...) de modo a não adormecer nos felizes sonhos de quem considera que a vida deve ser ‘sem pensamentos’”.

Esse é o estilo dominante nas interrogações de Jesus que Monti seleciona e comenta de modo envolvente. Apenas para fazer resplandecer alguns lampejos dos desafios que foram lançados pelo mestre da Galileia, eis algumas passagens evangélicas: “Quem dizem os homens que eu sou? ... E vocês, quem dizem que eu sou? ... Ó geração incrédula! Até quando deverei ficar com vocês? ... Por que vocês são tão medrosos? Vocês ainda não têm fé? ... Por que você fica olhando o cisco no olho do seu irmão, e não presta atenção na trave que há no seu próprio olho? ... Raça de víboras! Se vocês são maus, como podem dizer coisas boas? ... Vocês pensam que eu vim trazer paz à terra? ... Mas, o Filho do Homem, quando vier, será que vai encontrar a fé sobre a terra?”.

Certamente, sublinhamos as frases mais fortes: não nos esqueçamos que Ludwig Monti, em 2012, já publicou uma coleção das “Palavras duras de Jesus”. As explicações que acompanham os textos reúnem a dimensão interpeladora das palavras de Cristo e se tornam o ponto de partida para uma resposta pessoal, moral, existencial. O risco é o de escorrer o sal das perguntar, atenuar o seu poder literário na linguagem eclesial, anestesiar o seu “escândalo” e a sua essencialidade.

O próprio autor está ciente disso e, na sua introdução, estimula o leitor a um encontro direto que gere “novas perguntas, em um infinito interrogar e interrogar-nos que pode nos preservar de toda dureza, intolerância, preguiça, estupidez”.

Algumas das perguntas de Cristo, porém, já contêm respostas ternas. “O que você quer que eu faça por você?”, pergunta ele ao cego de Jericó. “Você vê esta mulher?”, pergunta ele ao fariseu hipócrita sobre a prostituta em lágrimas. “Quantos pães vocês têm?”, questiona ele antes de multiplicá-los para a multidão faminta. “Por que vocês estão perturbados e por que surgem esses pensamentos no seu coração?”, interroga os seus apóstolos perplexos, encontrando-os como ressuscitado.

É verdade, porém, que as perguntas de Jesus, predominantemente, parecem bagunçar a vida dos interpelados, querem desordenar a ordenada uniformidade cotidiana, tentam sacudir a vida quieta dos hábitos. Nesse ponto, seria interessante reunir também as perguntas humanas dirigidas a Cristo.

Ampliando o horizonte bíblico, não se deve esquecer que, por exemplo, o livro de Jó é uma ininterrupta interrogação lançada em direção a um céu aparentemente vazio e mudo. Heine era duríssimo no seu “Lázaro”: “Não deixemos de nos interrogar / de novo e de novo / até que um punhado de terra / nos feche a boca ... / Mas esta é uma resposta?”.

Muito diferente é o resultado da pergunta de Jó que, surpreendentemente, terá como resposta de Deus uma sequência de perguntas adicionais, que, porém, preservam em si o germe do sentido último, capaz de colocar em um “projeto” metarracional o insone interrogar-se sobre o mistério do mal.

Clive Staples Lewis, o autor inglês das “Crônicas de Nárnia”, não se enganou quando anotava: “Costumamos dizer que Deus não responde às nossas perguntas; na realidade, somos nós que não escutamos as suas respostas”.

 

 

 

Referência: Ludwig Monti. Le domande di Gesù. Prefácio de Enzo Bianchi. Cinisello Balsamo: San Paolo, 288 páginas. O comentário é de Gianfranco Ravasi, cardeal italiano e prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 20-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto (ihu.unisinos.br).