GREGÓRIO LUTZ E A REFORMA LITÚRGICA NO BRASIL

 Por Andrea Grillo

UM PIONEIRO DA REFORMA LITÚRGICA NO BRASIL: GREGÓRIO LUTZ
Para um homem que estudou e foi ordenado antes do Concílio Vaticano II, em 1960, a descoberta da liturgia durante os anos 1960 foi a abertura de um mundo novo. Poderíamos quase pensar que a leitura deste texto nos leva de volta ao caminho feito pela Igreja de 1960 até hoje. E é bom evocar novamente, em grandes capítulos, esses desdobramentos, na companhia do caminho do Pe. Gregório, que continua até hoje.

É de algum interesse que, enquanto o Pe. Gregório se tornava padre, em 1960, aos 29 anos, eu ainda não existia, tendo nascido no ano seguinte. Assim, podemos considerar este meu prefácio como um ato de honra a um dos liturgistas da “geração anterior”, de 30 anos antes de mim. Portanto, gostaria de colocar como premissa a uma rápida análise do texto uma série de considerações sobre essa “diferença de geração”.

1. Gerações comparadas
Lendo os textos deste livro, que abrangem um espaço de cerca de 40 anos, tento dizer uma palavra para recolocá-los no seu contexto original e, assim, introduzi-los mais adequadamente no tempo de hoje.

1.1 Os últimos anos e a crise do Concílio

Nos últimos 40 anos, na Igreja e na liturgia, aconteceram muitas coisas, muitíssimas. Três papas: a fase final, muito sofrida, do pontificado de João Paulo II; a tentativa de restauração eclesial e litúrgica de Bento XVI; os primeiros anos do pontificado profético e reformador de Francisco. Na liturgia, vivemos primeiro o entusiasmo, depois a desorientação, depois o projeto de orientação para o oriente (ou para trás); por fim, recuperamos a direção e o passo conciliar, o diálogo com o mundo, a relação entre rito e vida, o valor do ecumenismo, o bom senso, o realismo, a parrésia e também um saudável senso de humor.

Mas antes não sabíamos tudo isso: olhávamos para o passado e intuíamos apenas “per speculum” o que devia nos esperar. Assim, surgiu, então, uma reconstrução da história da salvação e da sua relação com a reforma litúrgica, que foi cuidadosamente apresentada em todos os seus aspectos.

1.2 Duas gerações “conciliares”

No fundo, relidos hoje, esses textos são uma prova de uma “necessidade de releitura e de reapropriação do Concílio Vaticano II”, que já estava vivíssima há 40 anos. E que teve que sofrer todas as inércias, as surdezes, as tibiezas e as injustiças que tivemos que ver até o fim do pontificado de Bento XVI. Antes de Francisco, apenas alguns meses antes dele, ainda com o primeiro aniversário conciliar, em 11 de outubro de 2012, o ar havia mudado.

Apesar da tentativa de impor uma leitura do Concílio mediada e quase anestesiada, através do paralelismo não ingênuo do Ano da Fé, do Catecismo da Igreja Católica, foi o aniversário do Concílio Vaticano II que prevaleceu e marcou as mentes, as bocas e os corações. As mentes recomeçavam a raciocinar de modo sinodal, as bocas pronunciavam novamente palavras há muito tempo censuradas, os corações finalmente compreendiam a irreversibilidade dos fenômenos e a oportunidade de escolhas novas. Desde que o aniversário conciliar pôs-se em movimento, tornou-se imparável e superou todas as resistências.

1.3 Sonho ou realidade?

Este livro, portanto, atesta as premissas daquilo que, hoje, finalmente, pode se tornar realidade pastoral e desígnio cultural. Com contribuições diversas – breves intervenções de esclarecimento ou grandes textos orgânicos –, o autor tenta restituir ao leitor, com todo o frescor possível, as melhores intuições que, há quase 60 anos, redespertaram o interesse pela liturgia no corpo eclesial e que pareciam mortas e enterradas, quase como objetos de uma “damnatio memoriae”.

Essa “amnésia eclesial” sobre as condições que permitiram uma experiência e uma práxis litúrgica renovada requer uma pesquisa acurada. Por um lado, a liturgia parece ser o lugar “inicial” de uma Reforma da Igreja que deve ser “outra coisa”. Não raramente, isso fez com que a reforma litúrgica “se distraísse” de outros níveis de preocupação e de prioridade eclesial. Por outro lado, precisamente a liturgia, que inaugurou a reforma conciliar, continua sendo também o nível mais profundo da conversão pastoral exigida pelo Concílio Vaticano II. E o Pe. Gregório dá um testemunho disso não apenas profundo, mas também em 360 graus.

1.4 Pressentimento e memória

Depois do Concílio, com toda a água que passou debaixo das pontes eclesiais e culturais, colocando novamente estas páginas debaixo dos olhos e relendo todas elas com cuidado, encontram-se os pressentimentos daquilo que ainda devia ser, mediados pela memória daquilo que já havia sido e não devia ser negado, removido e ficar perdido.

A publicação deste texto pode assumir, assim, o sentido de uma “entrega”. A geração que “recebeu a reforma” – a geração daqueles que viveram “ao vivo” o evento conciliar e o viram “impactar” a realidade europeia e sul-americana, como o Pe. Gregório – entrega um patrimônio de saber e de experiência que, de modo algum, pode ser contornado, subvalorizado, nem mesmo, como às vezes acontece, difamado.

Isso não significa que aquilo que encontramos aqui atestado não exija reflexão, crítica, reavaliação. O respeito que devemos ao trabalho “de uma vida” também inclui a responsabilidade de dizer “as mesmas coisas com outras palavras”. Mas sempre devemos fazer as contas com essas palavras.

2. A “matéria” do livro: liturgia geral e liturgia especial

Se olharmos para o índice do volume, logo nos damos conta da amplitude e da articulação do pensamento do Pe. Gregório. Nos primeiros capítulos do texto, fica evidente a estruturação “histórico-salvífica” de apresentação da liturgia, que elabora com cuidado o tema do mistério pascal, do sacerdócio de Cristo e da Igreja como “comunidade sacerdotal”.

No entanto, o Pe. Gregório acrescenta a isso uma bela sensibilidade pela dimensão “simbólico-ritual” da liturgia, com a peculiaridade da sua mediação. Esse interesse se associa, de modo clássico, a uma grande sensibilidade pelo papel que o Espírito Santo exerce no ato de culto ritual, com implicações muito claras no plano da espiritualidade e da catequese.

A conexão com a práxis eclesial brasileira acendeu no Pe. Gregório uma atenção específica pela corporeidade, pelo culto mariano e também pelas formas de “religiosidade popular” com as quais a tradição litúrgica deve entrar em contato, se quiser manter um vínculo com a vida dos sujeitos. Assim, a integração da cultura popular e a valorização do terço devem se tornar objetos de reflexão séria, por parte de uma “reforma litúrgica” que seja pensada em relação com uma “raiz local”, que, para o Brasil, assume uma dimensão “continental”.

Aqui me parece que, no Pe. Gregório, transparece a exigência de conjugar, de forma convincente, a “multiplicidade de formas culturais” com a “unidade da fé”. Por isso, ele também dedica uma atenção ao percurso com o qual o Congo havia alcançado a aprovação de um “missal romano” adaptado e inculturado para as dioceses do Congo. Também nesse caso, de fato, a realidade do Congo não é uma realidade unitária, mas diferenciada, com profundas diferenças entre dioceses diferentes, dentro do mesmo Estado, que pode ser considerado um “pequeno continente” dentro do continente africano.

A reflexão sobre o caminho da reforma abrange reflexões que começam nos anos 1980 e se encerram apenas poucos anos atrás. O trabalho da recepção, da adaptação e da salvaguarda da unidade atravessam as páginas do Pe. Gregório, com grande lucidez.

3. Uma reflexão sobre os sacramentos e sobre os sacramentais

Ao lado da reflexão sobre todo o campo da tradição litúrgica, reformado seguindo as indicações do Concílio Vaticano II, a coleção de textos também prevê uma parte muito significativa dedicada aos sacramentos. Todos os sacramentos são considerados não só na sua identidade mais típica, mas também nas dinâmicas iniciativas que eles determinam. Os textos dedicados à “primeira comunhão” e ao “matrimônio” atestam bem a compreensão do sacramento através de uma nova atenção às “práticas” que acompanham o significado teológico de modo original. Aqui me parece que posso reconhecer um dos dados fundamentais com os quais o Pe. Gregório se insere na grande corrente daqueles que permitiram a “recepção” da Sacrosanctum concilium e da reforma litúrgica.

De fato, a liturgia, precisamente com a aquisição do papel de “culmen et fons” de toda a ação da Igreja, contribui decisivamente não apenas para a disciplina da Igreja, mas também para a sua doutrina. O “saber” eclesial sobre o batismo, sobre a eucaristia, sobre a penitência e sobre a ordem sagrada é compreendido profundamente de novo. Por isso, no Pe. Gregório, fica muito claro que a recepção da Reforma Litúrgica é uma passagem decisiva para a vitalidade da Igreja do futuro.

Nesse sentido também se move a atenção pelas “formas novas” de vida sacramental, para as quais é necessária uma lúcida contribuição da teologia: o exame, dentro dos “sacramentais”, das liturgias da palavra “na ausência de presbítero” ou a discussão sobre o próprio papel da Palavra do ponto de vista teológico, ou também as aberturas para uma “comunhão eucarística” que enfrenta as “divisões eclesiais” constituem sinais claros de uma sensibilidade aberta, dialógica, serena.

O vasto campo dos interesses do Pe. Gregório, incluindo aí toda a atenção para o tempo litúrgico, a oração ao longo do tempo (ano litúrgico e liturgia das horas), junto com o cuidado da “ars celebrandi” como nova fronteira da Reforma Litúrgica, atesta bem o trabalho realizado em 360 graus, em diversos níveis, sem nunca perder o vínculo fundamental com a ação pastoral, na periferia, nos “hospitais de campanha” e nos “campos de refugiados”.

4. O trabalho teológico e os três “I’s” do Papa Francisco

Gostaria de concluir fazendo a mim mesmo e aos leitores uma pergunta muito simples: o que a teologia de hoje pode fazer nesse âmbito litúrgico? Obviamente, a pergunta tem a ver com o “depositum” não só da fé, mas também do trabalho teológico das gerações posteriores ao Concílio, às quais pertence totalmente a história teológica e litúrgica do Pe. Gregório.

É evidente que, na perspectiva inaugurada pelo Papa Francisco, que retoma o magistério dos “sinais dos tempos”, tão típico do Concílio Vaticano II, um pensamento teológico vivo e afiado, capaz de reflexão e de oração, é um dos instrumentos essenciais para “abrir” a Igreja. O Papa Francisco propôs esse relato belo e tocante em muitas ocasiões. O relato de uma teologia que não está “na sacada” ou “na escrivaninha”, mas “na rua”. E ele expressou isso, talvez de modo mais intenso, no famoso discurso ao Colégio de Escritores da revista La Civiltà Cattolica (de 9 de fevereiro de 2017). Ele se apresenta como uma “teologia dos três I’s”: uma teologia da inquietação, uma teologia da incompletude e uma teologia da imaginação.

São os três “I’s” que, no início do romance “Tempos difíceis”, de Charles Dickens, são postos no banco dos réus da nova cultura “geral e abstrata”. Em certo sentido, podemos dizer que os ideais do “sistema institucional” olham com preocupação para toda manifestação de inquietação, de incompletude e de imaginação. O “sistema eclesial” exige total completude, tranquila autossuficiência, rigoroso princípio de realidade. E o sistema corre o risco de reivindicar isso também daqueles “funcionários” que se chamam teólogos. Que deveriam apenas justificar o status quo, não introduzir elementos de inquietação e de perturbação, e simplesmente repetir o que o código e o magistério historicamente afirmaram: como se a história tivesse acabado, e a Igreja pudesse ser apenas “retro oculata”.

Parece-me que, a partir dos textos do Pe. Gregório, emerge uma Igreja não apenas “retro”, mas também “ante oculata”, que olha para a frente. E que, por isso, sabe que a tradição só é benéfica se for saudável. Sã tradição e legítimo progresso foram as chaves de interpretação com as quais o Pe. Gregório ofereceu o seu próprio serviço eclesial e cultural por 50 anos ou mais.

Este livro atesta a bondade do percurso e a utilidade de que a memória dele não se perca. O que está em jogo é a qualidade do ato de fé de que os nossos filhos e os nossos netos serão capazes.

 

O teólogo italiano Andrea Grillo é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma; no Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona; e mo Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O prefácio foi publicado por Come Se Non, 08-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto, em www.ihu.unisinos.br - https://bit.ly/2rygTt9