A SACRAMENTALIDADE DA AMAZÔNIA

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por Frei Luis Felipe C. Marques, OFMConv. e Frei Antonio dos Santos Junior, OFMConv.

Na realidade que é superior a ideia, no tempo que é superior ao espaço, na pirâmide invertida de papa Francisco, o povo de Deus é pleno de sacramentalidade. A autoridade sacramental é aquela que vem do povo de Deus. O povo de Deus é o fundamento da sacramentalidade. É sacramentalidade feita “de encontro e dedicação, de contemplação e serviço, de solidão acolhedora e vida comum, de jubilosa sobriedade e luta pela justiça” (QA 77). Assim, os ministros pela autoridade do povo de Deus fazem desde mesmo povo, um povo sacramental. Desse modo, o povo sacramental institui os seus ministros.

O ponto nevrálgico do exemplo de sacramentalidade é o sonho. O que existe de mais simbólico que um sonho? O aspecto simbólico presente em cada sonho é sempre força de unificação e integração de tantos aspectos, formas, coisas, lugares. Enquanto muitas vezes nos concentramos a dar diagnósticos, o papa se concentra nos sonhos. Os sonhos do papa partem da realidade e imaginam-na transfigurada pela graça. É um método inspirado na correlação entre fidelidade, liberdade e criatividade.

Aqui está uma das novidades grandiosas que a exortação nos oferece, contudo, pela sua sutileza e inteligência, passou despercebida nos comentários gerais e nas reflexões sobre a exortação: a sacramentalidade do povo de Deus e a sacramentalidade dos sonhos. A novidade da exortação não está no que diz, mas na maneira como se diz. Com isso, a perspectiva dos sonhos, já usada pelo papa em sua primeira exortação: “Sonho com uma escolha missionária capaz de transformar tudo” (Evangelii gaudium 27), retomada persistentemente no Sínodo sobre os jovens: “Devemos perseverar no estrada dos sonhos” (Chistus vivit 142), estrutura a sacramentalidade de Querida Amazônia.

Animado pela fé e pela sabedoria que aponta sempre para o Senhor, o sonho não pode tornar-se pesadelo. É preciso despertar o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós e que, às vezes, deixamos atrofiar. Lembremo-nos de que, quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos (QA 56).

Assim, longe do que parece apresentar, a reforma eclesial não para, pelo contrário, toma uma direção mais decisiva: longe da tentação do clericalismo que interpreta tudo e, sobretudo, a ordem sagrada como poder (cf. QA 88) e a Igreja como detentora de todo o poder do querer e do não-querer, o papa incentiva uma ministerialidade que vá além e assim seja capaz de alimentar e nutrir (cf. QA 90-92). Em tudo, o principio originário do magistério é reinante: “não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: Dai-lhes vós mesmos de comer” (Evangelii gaudium 49).

Assim sendo, no contexto pan-amazônico, o papa vê o lugar privilegiado para um exercício que força a uma conversão. Com isso, a Amazônia é lugar teológico. É um lugar que nos convoca para uma conversão cultural, social, ecológica e eclesial. Nesse lugar, a sacramentalidade, como dissemos acima, é escondida, indireta e intuitiva.

Todas essas atitudes dependem da fé. A fé, que como sabemos, é um caminho de adesão pessoal a um projeto de humanidade revelado em Jesus Cristo. A partir disso, essa própria revelação é sacramento, pois o entendemos como a “expressão da experiência em que Deus vem ao encontro do homem” (RATZINGER, 2019, p.190). É um mistério que na revelação do projeto de Deus, na encarnação do Filho, podemos observar claramente.

A partir disso, os sacramentos não “deveriam ser vistos como separação da criação, pois constituem um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida sobrenatural” (QA 81). Pois, “Ele é o Ressuscitado que penetra todas as coisas”. Assim sendo, segundo a experiência cristã, “todas as criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde introduziu um gérmen de transformação definitiva” (QA 74).

Nessas mesmas perspectivas, o também recente documento da Comissão Teológica Internacional, “A reciprocidade entre fé e sacramentos na economia sacramental”, elenca alguns aspectos sobre a sacramentalidade: “à lógica sacramental pertence a correlação inseparável entre uma realidade significativa, uma dimensão externa visível, e a humanidade de Cristo”; por isso, “compreender a lógica sacramental envolve entender como a economia divina da salvação opera [...] ao assumir nossa humanidade com todas as suas consequências”.

Assumir nossa humanidade em todas as suas consequências significa saber contemplar os lugares onde habita uma presença. Não somente marcar os lugares, como geografia de salvação, mas também marcar as coisas e envolvê-las de unidade simbólica, como história de salvação. Por isso, a Amazônia como lugar teológico é plena de sacramentalidade.

Dessa forma, concluímos que Deus marcou seu encontro com o homem em todas as coisas. Nelas o homem pode encontrar Deus. Sendo Cristo o lugar de encontro por excelência, pois nele Deus está de forma humana e o homem de forma divina. Sendo assim, é pela fé que vemos essa unidade profunda, sem divisão e sem confusão (Boff, 2012, p.64). Essa unidade é sonho do símbolo. Quem dialogava com Cristo se encontrava com Deus, pois ele está “gloriosa e misteriosamente, presente no rio, nas árvores, nos peixes, no vento, enquanto é o Senhor que reina sobre a criação sem perder as suas chagas transfiguradas e, na Eucaristia, assume os elementos do mundo dando a cada um o sentido do dom pascal” (QA 74).