O tema da mulher não pode ser adiado, é urgente na Igreja

 

Dulce Araújo - Cidade do Vaticano

“A Igreja católica, seguindo o exemplo de Jesus, deve ser muito livre de preconceitos, de estereótipos e das discriminações contra a mulher. As comunidades cristãs devem fazer uma serie revisão da vida com vista numa conversão pastoral capaz de pedir perdão por todas as situações nas quais foram e são ainda hoje cúmplices de atentados à dignidade da mulher.”

Com base nesta reflexão a CAL, Pontifícia Comissão  para a América Latina, realizou de 6 a 9 de Março, no Vaticano, a sua Assembleia plenária, debruçando-se sobre o tema “A mulher, pilar na edificação da Igreja e da sociedade na América Latina”. O encontro terminou com algumas recomendações, entre as quais emerge um olhar teológico sobre a grandeza da dignidade e das vocações femininas em coerência com a Revelação.

O mensário “Mulher, Igreja, Mundo”, suplemento do jornal do Vaticano l’Osservatore Romano, dedica o seu número de Maio, a essa Assembleia da CAL, com diversos artigos, cujo denominador comum é a reciprocidade homem-mulher, na lógica da relação e do diálogo entre o feminino e o masculino. De entre esses artigos destacamos uma entrevista da socióloga argentina, Maria Lia Zervino ao Cardeal Marc Oullet, Presidente da CAL, propondo-a na rubrica dominical do Programa Português para a África, "África. Vozes Femininas." 

- A Assembleia plenária da CAL, Comissão Pontifícia para a América Latina, realizada em Roma de 6 a 9 de Março, desenvolveu o tema “A mulher, pilar na edificação da Igreja e da sociedade na América Latina. Um  tema atribuído ao CAL pelo próprio Papa. Qual terá sido, a seu ver, a razão desta escolha? O machismo clerical que o Papa Francesco tem posto em relevo em várias ocasiões, ou os holofotes da consciência social, focalizados sobre a mulher na Igreja?

O Papa não hesitou um instante: apresentamos-lhe dois temas e ele escolheu logo este. Ele é muito sensível às condições gerais da mulher: muitas situações de falta de reconhecimento, de maus-tratos , de solidão, de tráfico de pessoas. Por outro lado, o documento de Aparecida põe em evidência a irresponsabilidade masculina, a ausência do pai, a liberdade sexual – na mentalidade e na cultura – que os homens concedem a si próprios, mas não às mulheres. Trata-se de uma cultura machista que deve ser posta em discussão e que tem também incidência na Igreja, na mentalidade clerical, no desprezo em relação às mulheres, no que podem ou não podem fazer. Creio que tudo isso tenha tido influencia sobre a decisão do Papa.”

15 mulheres latino-americanas participaram na Assembleia

- Excepcionalmente, foram convidadas a participar nessa Assembleia plenária, umas 15 mulheres da América Latina (com diversas responsabilidades sociais e eclesiais) juntamente com os membros e os conselheiros da CAL (que são exclusivamente cardeais e bispos)  e ao secretário encarregado da vice-presidência, Gusmán Carriquiry, o leigo com maior responsabilidade e experiencia no seio da Cúria Romana. Que tipo de diálogo se estabeleceu entre as mulheres e os prelados? Qual foi o clima que se criou nesse encontro em que tanto uns como outros tiveram direito à palavra?

Obviamente, o tema não podia ser tratado sem a presença das mulheres, sem um número significativo de pessoas preparadas, mulheres com diversas capacidades e competências. Isto resultou num diálogo entre pares, na análise sociológica, histórica e mesmo pastoral. O contributo das mulheres teve igual valor ou mesmo superior ao dos prelados. Conseguimos partilhar as reflexões num clima muito cordial e construtivo, de autêntica escuta recíproca, de franqueza e ao mesmo tempo de debate respeitoso. Foi muito belo! Para mim, esses dias foram uma tomada de consciência. Devo confessar que o encontro me mudou profundamente no que toca às convicções que tinha sobre o tema. Estabeleci uma ligação com a cultura do meu país, o Canadá, onde a paridade homem-mulher é quase um dogma. Na minha experiencia pessoal havia um factor cultural positivo mas não de todo assimilado. Faltava-me o aprofundamento ligado à troca de ideias, coisa que tivemos nesse encontro. O diálogo autentico nos muda. Senti a presença do Espírito. É esta a chave.”

Uma teologia da mulher

- A partir de 2013, ano em que o Papa, no voo de regresso de Rio de Janeiro, disse, na sua primeira conferencia de imprensa , que era necessário uma teologia da mulher para discernir sobre a forma como as mulheres se devem inserir nos mais importantes processos de tomada de decisões na Igreja – dado que não pode limitar-se a ser “acólita, secretária da Cáritas, ou catequista”  - este pedido se repete muitas vezes. Acha que há actualmente  uma reflexão teológica  sobre a mulher? Poderia explicar brevemente o seu pensamento teológico subre este tema?

O Papa é incisivo em individuar os pontos da reflexão que devem ser aprofundados. Há uma teologia que se está a fazer. Depreende-se isto das actas do simpósio sobre o papel da mulher na Igreja, organizado pela Congregação para a Doutrina da Fé em 2016. Ocorre recuperar a teologia profunda de Ildegarda, Geltrude, Matilde, Edith Stein e das mulheres doutoras da Igreja. É preciso desenvolver uma teologia com forte capacidade racional, ou seja, de dialogo com a cultura, com as filosofias actuais, mas também com a teologia contemplativa, a teologia de Maria e dos padres da Igreja.

A plenária [da CAL] tratou o tema da mulher à luz da Santíssima Trindade e da Igreja. A minha base é a de um conhecimento profundo da teologia de von Balthasar e de Adrienne von Speyr. Esta última é um teóloga carismática, com o carisma da profecia. Reflectindo sobre o mistério da Trindade e à luz da antropologia teológica, a exegese nos diz que a imagem de Deus é a relação homem-mulher. Há uma raiz da diferença sexual ou de género no próprio Deus, na distinção da pessoa e no modo como se relacionam. Então, há Deus no arquétipo da mulher. Para mim foi uma iluminação: o fluir do Espirito Santo na relação Pai e Filho levou-me a dizer que em Deus há amor materno, amor filial e amor nupcial. Amor materno como consequência do amor nupcial. E depois, no plano da salvação: o Espirito Santo e a mulher são intimamente relacionados para que o Verbo se faça carne. Tudo isso levou-me a ter a certeza de que o papel do Espirito Santo na Trindade pode ser descrito como amor nupcial. A dignidade da mulher me pareceu muito mais clara a partir deste fundamento trinitário porque se se afirma que há um arquétipo da diferença homem-mulher em Deus, então há um arquétipo da mulher em Deus.”

Contributo das mulheres foi tido em consideração ao lado da dos cardeais e bispos

- Nós que tivemos o privilégio, enquanto mulheres latino-americanas, de participar neste extraordinário encontro  da CAL, fomos enriquecidas pelas intervenções dos cardeais, dos bispos e do secretario. E ficamos tocadas pela capacidade de escuta dos nossos interlocutores, pelo respeito e pela liberdade, assim como também pelo trabalho colaborativo em que parecia tangível o Espirito Santo. Também nós mulheres nos exprimimos sobre a família, a educação,  a catequese, a politica, economia, o trabalho, o empenho solidário das religiosas e o protagonismo das mulheres na História da América Latina, de entre tantos outros temas. Em que medida e de que modo estas intervenções foram úteis ao debate?

Quando se enfrenta o tema da mulher vêm ao de cima coisas relegadas, reprimidas, valores… Por isso, o primeiro fruto foi o próprio tema, gerador de vida.

Além disso, a importância da educação como factor histórico e como desenvolvimento contemporâneo, a constatação que as mulheres foram mantidas numa condição de escassa educação. Sinto vergonha por isso. Deve haver gente competente e, se há, deve participar mais nas decisões a todos os níveis, e também em todos os dicastérios. Vem-me à cabeça a parábola dos talentos: o talento das mulheres enterrámo-lo. E não por culpa delas, mas dos homens.  Foi forte a dimensão do testemunho, ao lado das intervenções. O testemunho da Irmã Mercedes Casas sobre a vida consagrada: que beleza! Simples, descritiva, tornada de forma muito feminina! Tocou-me muito. “

Cardeal Ouellet pediu perdão às mulheres

- Providencialmente, um dos dias em que se desenrolou a Assembleia da CAL coincidiu com o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Naquela manhã houve um facto importante e comovente, uma experiencia vital que ficou impressa no coração de cada um dos participantes: o Senhor Cardeal, Presidente da CAL, pediu pessoalmente perdão às mulheres. O que o levou a fazer isso?

A ideia nasceu em mim enquanto se aproximava o Dia da Mulher e aquele gesto fi-lo em primeira pessoa sem envolver os outros, embora fizesse sentido também para eles. Pensei nos meus limites, nos meus erros do passado, no meu pequeno mundo pessoal e em tudo o que tínhamos posto em relevo nos dias precedentes sobre a situação concreta da mulher, aos maus-tratos, a violência, o tráfico, o feminicídio, o desprezo, a violência familiar… Naquele quadro, e querendo realizar um gesto simples por essa ocorrência, fi-lo de forma espontânea, como homem perante as mulheres. E assim foi: senti-me comovido, mortificado, sinceramente arrependido pelos pecados dos homens perante as mulheres. Foi um gesto simbólico. Acho que seja no espírito do Papa Francisco”

Um sínodo sobre as mulheres 

- O momento culminante da plenária foi a audiência do Papa. De entre as conclusões do encontro latino-americano, o Sr. Cardeal pôs a questão de um Sínodo  da Igreja universal sobre o tema da mulher na vida e na missão da Igreja. Acha que seria possível imaginar um sínodo não com a metodologia que hoje se aplica nos encontros sinodais, mas também com uma nova modalidade (precisamente como aquela usada na assembleia da CAL), onde são ouvidos seja homens, seja mulheres?

“É claro que o tema “mulher” comporta a participação de mulheres. Talvez seria necessário mudar a modalidade dos sínodos. Poderia haver sínodos com a participação de bispos e sínodos mais eclesiais com leigos e religiosos, com um número significativo de mulheres, para todos os temas. Mas o tema da mulher não pode ser adiado. Está entre as urgências da Igreja. A América Latina foi um catalisador que vale para todas as culturas; para aliviar um pouco a prostração em que vivem geralmente as mulheres. A Virgem Maria é o máximo a que podemos pensar para um ser humano e à sua luz é necessário rever a condição actual da mulher com espírito de liberdade evangélica. A experiencia totalmente positiva desta troca de ideias na CAL poderia inspirar-nos para a metodologia do futuro. Não devemos adiar o tema porque nos dará aquilo que nos deu a plenária: foi sinodal e nos levou a um ponto de comunhão. O Espirito Santo nos leva nesta direcção”.

Esta pois a entrevista de Maria Lia Zervino ao Cardeal Marc Oullet, entrevista publicada com o titulo “Quando intervém o Espírito” no mensário em italiano “Mulher, Igreja, Mundo” neste mês de Maio de 2018.

Cardeal Ouellet  que para além de ser Presidente da CAL é também Prefeito da Congregação para os Bispos, reúne-se todos os sábados com o Papa Francisco, para tratar temas ligados às problemáticas episcopais.

Maria Lía Zervino, socióloga da Argentina, é Secretária da União Mundial das Organizações Femininas Católicas, com sede em Roma.

Quanto à CAL, Comissão para a América Latina, é um organismo da Cúria Romana, criada pelo Papa Pio XII em 1958 para estudar os problemas da vida católica, defender a fé e difundi-la na América Latina. Trabalha em sintonia com o CELAM, Comissão Episcopal Latino-americano .