Fraternidade e Amizade Social, Campanha da Fraternidade 2024: inspiração da Encíclica “Fratelli Tutti” do papa Francisco

 

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Por: Paulo César Nodari e Vicente Sérgio Brasil Fernandes (*)

Quando do anúncio pelo Conselho Permanente da CNBB, em novembro de 2022, da escolha do tema e do lema da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano de 2024, logo ficou evidente quanto o tema “Fraternidade e Amizade Social” e o lema “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8) foi inspiração da carta encíclica “Fratelli Tutti” (FT) do Papa Francisco, que, por sua vez, deixou-se inspirar pela vida do Santo de Assis, São Francisco. Para que possamos perceber essas influências, façamos um pequeno destaque das temáticas principais da Carta Encíclica.

A “FratelliTutti” está dividida em 8 capítulos. Dentre tantos conselhos deixados por São Francisco, o Papa Francisco, logo no início da Carta Encíclica, lembra de um convite muito especial do Santo de Assis, ao dirigir-se aos seus irmãos e irmãs, propondo-lhes uma forma de vida com o sabor do Evangelho: “[…] o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele, declara feliz quem ama o outro, ‘o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si’.” (FT, 1). Segundo o Papa Francisco, o Santo de Assis, com poucas palavras conseguiu propor e explicar o significado de uma fraternidade aberta, projeto no qual todos são irmãos e irmãs de caminhada (Mt 23,8).

No Capítulo 1, intitulado: “As sombras de um mundo fechado”, o Papa Francisco chama a nossa atenção para o mundo fechado, mundo este cheio de ressentimentos e violências, no qual e dentro do qual estamos todos vivendo, mesmo conscientes de que este mundo é obra da criação divina, fruto de seu amor e de sua liberdade. Esta realidade de sombras, nos lembra o Pontífice, provoca muitos malefícios em nossa época, que é denominada de “mudança de época”. Um dos malefícios é a “[…] indiferença acomodada, fria e globalizada, filha de uma profunda desilusão que se esconde por trás dessa ilusão enganadora […]” (FT, 30), que leva ao distanciamento premeditado e o privilégio de alguns em detrimento de uma grande maioria, especialmente, os mais pobres de nossa sociedade, para quem falta-lhes uma vida digna e humana. A respeito dessa desilusão, que abandona os grandes valores cristãos, afirma o Papa Francisco:

‘[…] Essa é a tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da desilusão […]. O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas a proximidade, a cultura do encontro, sim. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim’. (FT, 30).

O tema da cultura do encontro é o que perpassa o Capítulo 2, cujo título é “Um estranho no caminho”. Neste segundo capítulo, o Santo Padre propõe-nos uma reflexão da parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37). Esta parábola traz a ideia de que o estranho que nos aparece no caminho não nos atrapalha. Muito pelo contrário, o aparecimento do “estranho” permite, dá-nos a possibilidade, para que possamos crescer em nossa humanidade. É a possibilidade do encontro que nos abre para sentimentos de compaixão, de misericórdia. É como que a convocação para que nos aproximemos e não fiquemos indiferentes. O Papa Francisco lembra, logo no início do capítulo, a passagem, belíssima, riquíssima e importantíssima, da Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes (GS). Lembra-nos que as angústias, tristezas e as alegrias do mundo estão no coração de Deus e devem ecoar no coração dos discípulos de Cristo. Ou seja, nada do que é humano pode ser indiferente ao coração da Igreja e dos discípulos de Cristo (GS, 1). A Parábola do Samaritano torna-se, pois, um convite para superar a indiferença e o distanciamento. Faz-se urgente aproximar-se, comover-se e agir, superando o distanciamento e assumindo a dialética processual e complementar do sentir (coração), do pensar (razão), do agir (mãos e pés). Nos dias hodiernos, ouvimos muito se falar e se comentar a respeito da temática da era tecnológica e da da informação, mesmo cientes de que vivemos um paradoxo, pois, se, por um lado, temos informações e notícias em tempo real aos acontecimentos, por outro lado, vemos e constatamos haver pouca comunicação. Temos muitas informações e pouca comunicação; muita visualização, likes e pouco encontro, pouca relação inter-pessoal. Por conta desse processo, o Papa Francisco lembra que o diálogo e a proximidade se dão, de fato, entre pessoas, ou seja, precisamos ter coragem de nos aproximar, desenvolver a capacidade de superar o distanciamento deliberado, o determinismo e a indiferença. Em contrapartida, a parábola do Bom Samaritano, “[…] habilita-nos a criar uma cultura diferente, que nos conduza a superar as inimizades e a cuidar uns dos outros.” (FT, 57). No final deste segundo Capítulo, há também uma espécie de convocação do Sumo Pontífice à Igreja, para que assuma, com muita convicção, o caminho e o itinerário processual de uma nova cultura.

Às vezes, deixa-me triste o fato de, apesar de estar dotada de tais convicções, a Igreja ter demorado tanto tempo para condenar energicamente a escravidão e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas. Todavia, ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados por sua fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé, com o humanismo que inspira, deve manter vivo um senso crítico perante essas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se. Para isso, é importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos. (FT, 86).

E, segundo o Papa Francisco, para acolhermos e cuidarmos uns dos outros, nós não podemos estabelecer fronteiras, sendo, pois, essa a temática do Capítulo 3, “Pensar e gerar um mundo aberto”. Neste terceiro Capítulo o Papa nos chama para pensar em gestar um mundo no qual não estejamos fechados em nós mesmos e busquemos sonhar e construir um mundo sem fronteiras, procurando construir mais pontes que barreiras e muros. “Feitos para o amor, existe em cada um de nós ‘uma espécie de lei de “êxtase”’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acréscimo de ser’. Por isso, ‘o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar’.” (FT, 88). Infelizmente, temos acompanhado e visto com frequência hoje uma posição política de muitos governantes de países que, por exemplo, ante à migração, por vezes forçada, de milhares de pessoas, implementando ações de fechamento de suas fronteiras, ou seja, ensejam e estimulam a erguimento de cercas e muros, gerando muitos desencontros, e, por conseguinte, aumentando a realidade de exclusão e separação. Em contrapartida, o amor coloca-nos no processo da comunhão e do encontro. “Por sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, uma maior capacidade de acolher os outros, em uma aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença.” (FT, 95). E, nessa perspectiva, lembramos que a justiça, intimamente conectada ao amor de comunhão, exige, por sua vez, reconhecer e respeitar não só os direitos individuais, mas também os direitos sociais e os direitos dos povos (FT, 122). Acentua o Sumo Pontífice:

Trata-se, sem dúvida, de outra lógica. Se não se fizer esforço para entrar nessa lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio. Mas caso se aceite o grande princípio dos direitos que brotam do simples fato de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar em uma humanidade diferente. É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só ‘a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação a serviço a serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira. (FT, 127).

Para tanto, é preciso ter “Um coração aberto ao mundo inteiro”, tema do Capítulo 4. Neste Capítulo o Papa Francisco reitera a sua fala novamente. Ao invés de muros e cercas, é urgente erguer pontes. Para isso, faz-se preciso entender essa realidade de exclusão e desenvolver uma outra sensibilidade, ancorada na aproximação, na edificação de pontes, e, enfim, agir buscando a mudança e a transformação do nosso coração. Não basta só imaginar que os outros precisam mudar, que as estruturas precisam mudar. Urge que a mudança, a metanoia, aconteça em cada ser humano, aconteça em nós também. O agir depende inicialmente da minha mudança. “A afirmação de que, como seres humanos, somos todos irmãos e irmãs, se não é apenas abstração, mas se materializa e se concretiza, coloca-nos uma série de desafios que nos movem, nos obrigam a assumir novas perspectivas e a produzir novas reações.” (FT,128). Logo, segundo o Sumo Pontífice, faz-se urgente desenvolver um outro modelo de intercâmbios, de conexões e de relações entre as pessoas, entre as culturas, e, também, entre os países. As novas relações precisam estar embasadas em relações fraternas, cujo princípio do seja propulsor da amizade social em face do bem comum de toda a humanidade. “Quem não vive a gratuidade fraterna transforma a sua existência em um comércio cheio de ansiedade: está sempre medindo aquilo que dá e o que recebe em troca.” (FT, 140). Nesse horizonte de uma cultura de fraternidade universal, embasada sobre os alicerces da amizade social e do amor político, afirma-se:

A verdadeira qualidade dos diferentes países do mundo mede-se por essa capacidade de pensar não só como país, mas também como família humana; e isso se comprova, sobretudo, nos períodos críticos. Os nacionalismos fechados manifestam, em última análise, essa capacidade de gratuidade, a distorcida concepção de que podem desenvolver-se à margem da ruína dos outros e que, fechando-se aos demais, estarão mais protegidos. O migrante é visto como um usurpador que nada oferece. Assim, chega-se a pensar ingenuamente que os pobres são perigosos ou inúteis, e os poderosos, generosos benfeitores. Só poderá ter futuro uma cultura sociopolítica que inclua o acolhimento gratuito. (FT, 141).

Na continuidade e logicidade da temática da FT no Capítulo 5, intitulado “A melhor política”, logo no início, o Papa Francisco afirma, categoricamente: “Para tornar possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada a serviço do verdadeiro bem comum.” (FT, 154). A compreensão da política na perspectiva do bem comum é a capacidade de superar a dimensão dos interesses individuais e pensar nas questões coletivas, pois, hoje, a política, submetida aos interesses econômicos e financeiros, acaba distanciando-se do bem comum e associando-se aos interesses privados e corporativos. O Sumo Pontífice lembra que a melhor política pensa e está à disposição do bem comum. É importante fazer o exercício da caridade, tanto no âmbito pessoal, como também no âmbito comunitário. É fundamental que a ação política seja entendida como uma atitude necessária em vista do bem comum. Assevera o Papa Francisco:

A tarefa educativa, o desenvolvimento de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a reagir face as próprias injustiças, as aberrações, os abusos dos poderes econômicos, tecnológicos, políticos e mediáticos. Há visões liberais que ignoram esse fator da fragilidade humana e imaginam um mundo que corresponda a determinada ordem que poderia, por si só, assegurar o futuro e a solução de todos os problemas. (FT, 167).

Faz-se necessário recuperar o sentido da política, ou melhor, entender a melhor política como a busca do bem comum como o horizonte urgente e necessário do agir político. Urge superar a noção ruim de política e superar a compreensão e ação da submissão da política à economia. É aqui no debate sobre a condição humana integral que aparece a questão do amor político e da amizade social, dois pilares sobre os quais a Campanha da Fraternidade de 2024 trabalha e aponta como trilhos sobre os quais por meio do diálogo se chega à efetivação de uma nova cultura. Sobre isso assevera o Santo Padre:

Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos, não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesse sentido torna-se um nobre exercício da caridade. Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no “campo da caridade mais ampla, a caridade política”. (FT, 180).

No Capítulo 6, intitulado “Diálogo e amizade social” o Papa Francisco traz à tona o sentido do diálogo, que precisa ser entendido como não sendo propositalmente uma monologia, mas, sim, um espaço de encontro necessário entre diferentes. O diálogo é um convite para construir uma nova cultura, capaz e apta para dialogar e de assumir as diferenças como possibilidade de encontro, de entendimento e de convivência pacífica. Trata-se de compreender as diferenças como possibilidade de convivência e não em processo de exclusão. Acentua o Santo Padre:

Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contacto: tudo isto se resume no verbo “dialogar”. Para nos encontrarmos e ajudarmos mutuamente precisamos de dialogar. Não é necessário dizer para que serve o diálogo; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não é noticiado como as desavenças e os conflitos; contudo, de forma discreta, mas além do que podemos notar, ajuda o mundo a viver melhor. (FT, 198).

Portanto, a necessidade de acolher com gratuidade o diferente leva-nos a uma atitude de não aceitação do distanciamento e da indiferença, conduzindo-nos, por conseguinte, a uma nova cultura, reconhecendo que a vida é a arte do encontro, para lembrar de Vinícius de Moraes. Utilizando-se da imagem do poliedro, que tem muitos lados e muitas faces, o Papa Francisco assevera que a cultura é composta de diferentes e ricas matizes. “O poliedro representa uma sociedade em que as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças.” (FT, 215). Lembra-se, pois, que nesta nova cultura ninguém é inútil e ninguém é supérfluo, e, por isso, todos contam e todos são importantes e isso implica incluir a todos no diálogo cultural, inclusive as periferias, sejam elas geográficas, territoriais, virtuais ou psíquicas. É preciso, então, buscar gerar uma nova cultura, gerando processos de diálogo, de encontro, de aproximação e de superação de toda e qualquer forma de indiferença (FT, 216). Para tanto, precisamos abrir espaço em nós para acolher o outro, o diferente e aprender a escutá-lo e a compartilhar as coisas comuns. Precisamos construir uma nova cultura de reconhecimento, de proximidade e de amabilidade. Sublinha o Santo Padre:

O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante, nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura em uma sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes. (FT, 224).

E essa nova cultura é o que nos apresenta o Capítulo 7, intitulado: “Percursos de um novo encontro”. Neste Capítulo, o Santo Padre convida-nos a realizar um percurso de uma nova cultura, lembrando ser preciso não se descuidar e não se afastar da verdade. “Só da verdade histórica dos fatos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos.” (FT, 226). A verdade é “conditio sine qua non” para a construção de uma cultura de fraternidade universal, salientado, no entanto, que a verdade precisa estar conectada, intimamente, com a justiça e com a misericórdia. “Com efeito, ‘a verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia. Se, por um lado, são essenciais – as três juntas – para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas […].” (FT, 227). O caminho para a construção da paz exige de todos o esforço e o empenho e a convicção de que todos podem ser considerados artífices e colaboradores dessa nova cultura de encontro e de paz. Por isso, em um mundo dilacerado por muitas guerras, fundamentado sobre a lógica de vencedores e vencidos, ou seja, de que o mais forte vence o mais fraco lançando mão da força e da violência, o Papa Francisco convida-nos para um aprendizado novo e desafiador, o de uma convivência fraterna e pacífica. Sublinha-se, pois:

O caminho para a paz não implica homogeneizar, mas permite-nos trabalhar juntos. Pode unir muitos nas pesquisas comuns, em que todos ganham. Perante certo objetivo comum, poder-se-á contribuir com diferentes propostas técnicas, distintas experiências, e trabalhar em prol do bem comum. É preciso procurar identificar bem os problemas que uma sociedade atravessa, para aceitar que existem diferentes maneiras de encarar as dificuldades e resolvê-las. O caminho para uma melhor convivência implica sempre reconhecer a possibilidade de que o outro contribua com uma perspectiva legítima, pelo menos em parte, algo que possa ser reavaliado, mesmo que se tenha enganado ou agido mal. Porque “o outro nunca há de ser circunscrito àquilo que poderia ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo”, uma promessa que deixa sempre um lampejo de esperança. (FT, 228).

O Papa Francisco finaliza a Carta Encíclica “Fratelli Tutti” chamando a atenção para a missão das religiões. No Capítulo 8, intitulado: “As religiões a serviço da fraternidade no mundo” acentuam-se duas premissas fundamentais, a saber: a) Deus é Pai de todos e todas, e, por isso, somos todos irmãos e irmãs (Mt 23, 8); b) reconhecimento da dignidade de cada pessoa humana. Acentua-se com a FT:

As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância. Como ensinaram os bispos da Índia, “o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e amor”. (FT, 271).

O Santo Padre convida para que as religiões assumam o projeto de fraternidade universal, uma vez que a missão das religiões é ligar e conectar os seres humanos a Deus e entre si. “O culto sincero e humilde a Deus ‘não leva à discriminação, ao ódio e à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e pela liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos’.” (FT, 283). Essa dimensão de ecumenismo e de diálogo inter-religioso religa os seres humanos a Deus, cientes, no entanto, de que quem deseja religar-se a Deus precisa religar-se aos irmãos e irmãs. “Entre as religiões, é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus.” (FT, 281). Com efeito, se partirmos do olhar de Deus, então, precisamos trabalhar incansavelmente pela convivência pacífica e digna, e, para tanto, urge uma educação e uma promoção dos mais pobres e excluídos, rumo a um desenvolvimento integral (FT, 282).

Como dissemos no início desta reflexão, tendo sido a temática da CF 2024, inspirada na Carta Encíclica “Fratelli Tutti”, o tema e o lema da CF 2024 nos provocam a uma análise reflexiva acerca de como está e anda nossa realidade brasileira atualmente, em face dos desafios do projeto de fraternidade universal. Lembra-se, então, que fraternidade significa caminhar e trilhar juntos e juntas, por meio do diálogo, assentando-nos sobre o amor político e a amizade social. No número 16 da CF, temos uma série de conexões da temática da fraternidade e da amizade social com os pontos abordados na FT. O texto-base da Campanha da Fraternidade 2024 assevera acerca da amizade social:

Mas, o que é amizade social? Deixemos que o próprio Papa Francisco nos responda: amizade social é “amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço (FT, n.1); amizade social é “uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física” (FT, n. 1); amizade social e um amor “desejoso de abraçar a todos” (FT, n. 3); amizade social é “comunicar com a vida o amor de Deus, recusando impor doutrinas por meio de uma guerra dialética” (cf. FT, n. 4); amizade social é viver livre “de todo desejo de domínio sobre os outros” (FT, n. 4); amizade social é “o amor que se estende para além das fronteiras” (FT, n. 99), “para todo ser vivo” (FT, n. 59); amizade social é o “amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; o amor que nos permite construir uma grande família na qual todos nós podemos nos sentir em casa (…). Amor que sabe de compaixão e dignidade” (FT, n. 62); amizade social é a nossa “vocação para formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros” (FT, n. 96); amizade social é “a capacidade diária de alargar o meu círculo, chegar àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo de interesses, embora se encontrem perto de mim” (FT, n. 97); amizade social é “o amor [que] implica algo mais do que uma série de ações benéficas. As ações derivam de uma união que propende cada vez mais para o outro, considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas ou morais. O amor ao outro por ser quem é impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando essa forma de nos relacionarmos é que nos tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos” (FT, n. 94: grifos do autor).

Tomando em conta a reflexão acima, é imperioso pensarmos como andam nossas relações, pois falar sobre a amizade social e a fraternidade é refletir sobre “o amor presente nas relações sociais” (CF 17). Faz-se necessário pensar sobre a mudança de cultura: sair de uma cultura da indiferença, da exclusão e da violência para uma cultura da pertença com base no mandamento: “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8). Assim, precisamos responder a algumas perguntas que nos interpelam e incomodam cotidianamente: “onde está o teu irmão?” (Gn 4, 9); “quanto vale uma pessoa?” (FT, 106). Tais questionamentos devem iluminar as sombras de um mundo fechado de nossa realidade repleta de não-irmãos e não-irmãs. Precisamos realizar a passagem da negação deliberada de humanidade para uma universalidade de humanos e humanas. Portanto, o desafio que nos propõe a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por intermédio da CF 2024 é compreender e assumir o que nos fala o profeta Isaías: “alargar o espaço de nossa tenda” (Is 54, 2), de modo a fazer com que nesse alargamento possamos superar a cultura de cancelamento, de inimizade, de fechamento e de exclusão existente, principalmente, no que se refere a uma mudança de atitudes em direção ao acolhimento dos numerosos irmãos e irmãs que são invisibilizados e desumanizados. Assim sendo, somos convidados a tornar o espaço eclesial uma espécie de tenda alargada. Assevera o texto-base da CF:

É assim que muitos imaginam a Igreja: uma morada ampla, mas não homogênea, capaz de dar abrigo a todos, mas aberta, que deixa entrar e sair (cf. Jo 10, 9), e em movimento para o abraço com o Pai e com todos os outros membros da humanidade. Alargar a tenda exige acolher outros no seu interior, dando espaço à sua diversidade (CF, 124: grifos dos autores).

(*) Paulo César Nodari. Graduado em Filosofia e Teologia. Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Filosofia. Coordenador dos Cursos de Filosofia, Teologia e Gestão Paroquial e de Projetos Sociais na Universidade Católica de Brasília (UCB). Professor no Instituto São Boaventura (ISB).

(**) Vicente Sérgio Brasil Fernandes. Graduado em Filosofia. Pós-Graduado em Filosofia e Existência. Membro da Comissão de Justiça e Paz/DF. Professor no Instituto São Boaventura (ISB). Consultor na Studo Consultoria.